Wednesday, December 17, 2014

Tratando a acondroplasia com meclizina

Antes de começar

Às vezes, para os leitores não-técnicos, pode ser difícil acompanhar a linguagem utilizada em artigos como este. Se você começar a se sentir um pouco perdida (o) com o jargão usado, não desista. Este blog contém muitos outros artigos que foram escritos com o objetivo de compartilhar conhecimento ao mesmo tempo buscando simplificar a linguagem da ciência por trás da biologia do crescimento ósseo e da acondroplasia. Visite o índice em seu idioma preferido no topo desta página. Os primeiros artigos apresentam os conceitos básicos de uma forma mais digerível (pelo menos, busquei que fosse assim), e podem ajudá-lo a seguir com mais facilidade os mais recentes.

Introdução

Na sequência da publicação em 2013 do
interessante estudo sobre o uso da meclizina para tratar a acondroplasia (1; comentado aqui), o grupo japonês liderado por Matsushita acaba de publicar os resultados da sua exploração da utilização deste composto para tratar essa desordem do crescimento ósseo. As conclusões deste estudo ajudarão a definir os próximos passos para a meclizina nesta nova indicação terapêutica: poderia ela ser usada no contexto clínico, ou seja, ela pode ser testada em crianças com acondroplasia? Então, vamos ver o que os investigadores encontraram em seu estudo e pensar sobre seus resultados e potenciais próximos passos.

Cão velho, truque
novo

O Reaproveitamento ou reposicionamento de drogas antigas é uma estratégia cada vez mais reconhecida como uma forma viável para encontrar terapias em novas indicações a partir do vasto armamento
existente de drogas. O objetivo é ajudar a reduzir os custos sempre crescentes do desenvolvimento de medicamentos, com o uso de remédios com modo de ação e segurança já estabelecidos e aprovados para o mercado, reduzindo assim o gasto com desenvolvimento. A droga que cai nessa categoria poderia avançar a testes clínicos para uma nova indicação em muito menos tempo do que o necessário para uma nova molécula (do inglês new molecular entity; esta é a forma como as agências reguladoras, como a FDA chamar um novo composto de marca).

Interessados na acondroplasia, em 2103 Matsushita e colegas publicaram o artigo (1) onde eles descrevem que buscaram entre quase 1.200 compostos antigos de uma lista
aprovada de drogas e disponibilizada pelo FDA para reposicionamento, buscando alguma que pudesse ser utilizada para tratar esta displasia esquelética, e identificaram a meclizina como candidata.

Meclizina, ou meclozina, (Figura 1) pertence à grande familia de drogas anti-histamínicas e é um antigo medicamento atualmente indicado para enjoo de movimento.

Figura 1. Estrutura Molecular da meclizina.


Da Wikipedia
Naquele estudo, os investigadores testaram a meclizina em explantes ósseos de ratos e descobriram que a droga foi capaz de restaurar parcialmente o crescimento do osso através da redução da atividade de uma das principais cascatas químicas que o receptor de fator de crescimento de fibroblastos  3 (FGFR3) usa para exercer os seus efeitos nos condrócitos da placa de crescimento, a via da proteína quinase ativada por mitógeno (do inglês mitogen activated protein kinase ou MAPK) (Figura 2). Como você já deve saber, o FGFR3 age como modulador negativo natural (um freio) na maquinaria do crescimento ósseo e, devido à mutação encontrada na acondroplasia, torna-se muito mais ativo, levando à parada do crescimento ósseo. A cascata(ou via) da MAPK  inclui as enzimas RAS, RAF, MEK e ERK (e outras), que são ativadas (ligadas) em sequência ao FGFR3, como em um efeito dominó.

Figura 2.
Local de ação da meclizina.

Matsushita M et al. (2013). PLoS ONE 8 (12): e81569. doi: 10.1371 / journal.pone.0081569.
  Reproduzido aqui apenas para fins educativos.
O que há de novo?

No estudo atual, o grupo japonês fez novos testes, desta vez explorando os efeitos da meclizina em um modelo de rato com acondroplasia. Em resumo, eles verificaram que a meclizina realmente exerce um efeito positivo no crescimento ósseo, fazendo com que os animais mutantes tratados com esta droga crescessem mais em comparação com os animais não tratados. No entanto, a intensidade do efeito, embora estatisticamente significativa, não pode ser classificada como um resgate
completo do crescimento.

A meclizina foi administrada em doses equivalentes às doses terapêuticas utilizadas para tratar enjoo de movimento em seres humanos. Isto significa que o efeito foi observado em doses que dificilmente seriam tóxicas para crianças com acondroplasia.

Os pesquisadores trataram animais portadores da mutação a partir da terceira semana de vida, quando parte dos ossos cranianos já alcançou seu desenvolvimento final. Refiro-me aqui às suturas dos ossos cranianos. Estas partes do crânio fecham mais cedo na acondroplasia do que na média das crianças, levando a potenciais complicações clínicas e, em certa
características típicas observadas nesta condição genética. Eles descobriram que a terapia com meclizina não pode resgatar o padrão de crescimento dos ossos cranianos, confirmando uma das conclusões de um outro estudo importante recentemente publicado. (3)

Isto tem implicações importantes sobre o momento de se iniciar a terapia para a acondroplasia. Como
o FGFR3 está causando impacto ao crescimento desde o momento em que os ossos começam a ser formados, ainda no útero, quanto mais cedo uma terapia para acondroplasia começar, melhor. Teoricamente, isto seria importante para todos os ossos a fim de permitir um melhor desenvolvimento, mas é de fato ainda mais relevante para os ossos da cabeça. Assim, como parte da investigação, os autores também administraram meclizina a ratas grávidas sem a mutação. Eles verificaram que os filhotes destes animais cresceram mais do que os animais das fêmeas que não receberam a droga. Os autores não descrevem se houve qualquer sinal de toxicidade com o uso de meclizina nem nas fêmeas grávidas nem na prole. No entanto, os resultados observados justificam testes em animais afetados pela acondroplasia, um passo que os investigadores afirmam que vão dar na próxima etapa de sua pesquisa.

Em síntese, estes são os destaques do novo estudo realizado por Matsushita et al.:

  • Ratos portadores da mutação da acondroplasia cresceram significativamente mais quando expostos à meclizina;
  • O efeito foi observado especialmente em ossos longos. Os ossos do crânio não responderam à terapia;
  • O efeito no crescimento ósseo foi significativo, mas não restaurou integralmente o crescimento ósseo esperado;
  • O efeito no crescimento do osso foi obtido com doses consideradas alcançáveis na faixa terapêutica da medicação;
  • O efeito no crescimento do osso foi também observado em animais sem acondroplasia.
Mais coisas para pensar
 (veja o comentário sobre as estatinas, recentemente publicado)

A descoberta de drogas antigas que podem ter um papel na terapia para a acondroplasia é fantástica. Se comprovado que funciona em sua faixa de dosagem terapêutica 
(em outras palavras, que é segura e eficaz em doses habituais) a meclizina pode representar uma grande conquista para o tratamento da acondroplasia,pois tem pelo menos três vantagens-chave em comparação com os novos compostos em desenvolvimento neste momento:

1. Está rápida e facilmente disponível em todo o mundo;
2. É barata;
3. É uma droga oral.

No entanto, é bom manter uma visão realista sobre a pesquisa
realizada até agora com a meclizina. Apesar de que vários testes ainda estão na fila antes de se assumir qualquer efeito em crianças com acondroplasia, em qualquer intensidade, face aos resultados atuais, parece que ela não será capaz de resgatar todo o crescimento potencial nos indivíduos afetados.

Isso abre a opção de associação com outras drogas que também têm potencial para combater o FGFR3 mutante, especialmente se elas tiverem modos distintos de ação. Este é exatamente o caso das estatinas, que em outro estudo recente demonstraram promover o crescimento ósseo na acondroplasia. Combinar essas drogas pode resultar em efeito sinérgico, ao mesmo tempo em que se pode manter as drogas na sua faixa segura de dosagem.

Outro aspecto é que esses medicamentos antigos podem também ser combinados com outras terapias em investigação agora. Por exemplo, em  teoria
a meclizina poderia ser utilizada com análogos do peptídeo natriurético tipo C (CNP), com anticorpos ou outros compostos que visam o FGFR3.

E finalmente

Como tenho mencionado em artigos anteriores, uma grande preocupação sobre as novas terapias para qualquer condição clínica é sobre como elas serão disponibilizadas para as pessoas que delas necessitam após sua aprovação pelas autoridades regulatórias. Uma série de análises recentes publicadas pela imprensa especializada tem mostrado que o desenvolvimento clínico de drogas está se tornando mais e mais caro nas últimas décadas,
empurrando mais e mais fortemente os custos do remédio para o  consumidor final. Esta é a realidade para doenças comuns, tais como diabetes ou hipertensão. Esta é, de fato, uma questão ainda mais séria para as doenças raras.

Por outro lado, este é um desafio para os desenvolvedores de drogas. Como eles farão a nova droga se tornar útil se poucos podem dar ao luxo de pagar por seu preço? Um acordo racional deve ser estabelecido entre todas as partes envolvidas, desde os fabricantes de medicamentos, as autoridades de saúde, até a população interessada e seus representantes.

Neste contexto, (re) descobrir a meclizina e outros compostos pode representar uma boa opção e argumento justo sobre excessos que poderemos ver no futuro, com a chegada dos novos compostos (as moléculas novas) em desenvolvimento. No final das contas,
é muito desejado o equilíbrio entre o discurso de sustentabilidade da indústria (e a merecida recompensa pelo bom trabalho de descoberta) e o cumprimento do maior objetivo de qualquer nova terapia - tratar aqueles que dela precisam.

Referências
 
1. Matsushita M et al. Meclozine facilitates proliferation and differentiation of chondrocytes by attenuating abnormally activated FGFR3 signaling in achondroplasia. PLoS ONE 2013 8(12): e81569. doi:10.1371/journal.pone.0081569. Acesso gratuito.


2. Matsushita M et al. Meclozine Promotes Longitudinal Skeletal Growth in Transgenic Mice with Achondroplasia Carrying a Gain-of-Function Mutation in the FGFR3 Gene. Endocrinology 2014 Dec 2:en20141914. [Epub ahead of print]. Acesso gratuito.

3. Matsushita T et al. FGFR3 promotes synchondrosis closure and fusion of ossification centers through the MAPK pathway. Hum Mol Genet 2009;18(2):227-40. Acesso gratuito.

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